sábado, 21 de novembro de 2015

O Enigma de Kaspar Hauser - Contraponto | Revista de Cinema


O Enigma de Kaspar Hauser forma com Stroszek (1977) uma espécie de documentário em duas partes da tentativa de Werner Herzog entender (para eventualmente absorver) a figura singular de Bruno S., seu protagonista. A fonte para o filme de 1974 é um fato real acontecido na Alemanha de 1820, que entrou para a História como paradigma sociológico da aculturação. Que esse acontecimento tenha tornado o Kaspar Hauser original um marco não significa, no entanto, que ele seja uma exceção. Sua existência tão pronunciada é o que mais assegura que outros como ele sempre estiveram por aí. Não exatamente trancafiados por mais de trinta anos, não propriamente ignorantes da existência de uma humanidade, não necessariamente grandes bebês que não sabem andar, falar ou comer decentemente. O que interessa à Herzog não é a mitologia criada em torno de Kaspar Hauser, mas ao contrário, aquilo que ele tem de mais relacionável, que diferenciava sua experiência de uma mera adaptação ao mundo para uma aproximação frontal e direta da mecânica que rege uma vida que não era a vida de antes.

Bruno S., internado desde os três anos de idade numa instituição para doentes mentais sem no entanto sê-lo, e que por volta dos trinta anos havia sido diagnosticado como esquizofrênico por conta dos traumas do cárcere de uma vida inteira, era um artista de rua quando foi descoberto e escalado por Herzog para interpretar o protagonista de seu filme – o único papel que ainda não tinha dono, dada a dificuldade imaginada pelo diretor que um ator "normal" teria para dar alguma veracidade ao personagem. São famosas as anedotas de set dos dois filmes estrelados por Bruno S. (os únicos de sua efêmera carreira no cinema), em que o ator fazia longas palestras caóticas e desconexas para uma equipe que era obrigada pelo diretor a prestar atenção em cada palavra, ou mesmo quando simplesmente precisava gritar por vários minutos antes de iniciar uma cena. Herzog conta que a postura de Bruno S. nas gravações era sempre a de alguém que desconfia de todo aquele circo, não só o circo do cinema, mas o circo da própria existência humana na coletividade. Daí que a opção de Herzog por Bruno S. talvez tenha se devido muito pouco à seu passado enclausurado e as complicações vindas dele, e muito mais àquilo que se exibia diante do diretor numa rua alemã qualquer (e que se exibe diante dos espectadores nas duas obras-primas que protagoniza), essa sensação incomum de estar frente à algo tão reconhecível quanto tão completamente estranho e misterioso. Se Bruno S. não é o outsider absoluto que Kaspar Hauser foi, ao menos divide com ele uma característica fundamental para Herzog e para toda uma cinematografia que o diretor construiria dali para frente: ambos são símbolos máximos da explosão de uma faceta do mundo que nos é familiar, visível, e mesmo tangível, mas cujos sentidos íntimos nos escapam completamente.

Homem, como nós, com pernas, nariz, olhos, que depende da respiração para viver, que precisa se alimentar regularmente – mas ainda assim, que homem é esse? E se a aparência é idêntica, mas todo o resto nega a proximidade, será que ainda é homem? Kaspar Hauser cumprirá um duplo trajeto dentro do filme, seqüência natural de entronização dos valores que, acredita a sociedade que o acolhe, fazem do bicho humano um homem. Passará pela religião, mas desafia os clérigos quando resiste à aceitação do mistério da fé: diz que precisa primeiro aprender a ler e a escrever para depois entender o resto. Kaspar desconhece a ideia de um Deus como força superior, e ao pedir primeiro o conhecimento terreno, enquadra essa elevação divina como apenas mais um desdobramento da inteligência humana. Chega à lógica, e não entende como ela pode ser uma só, quando o mundo novo do qual começa a tomar parte mostra-se tão múltiplo; se a lógica, ciência do conhecimento absoluto, não compreende nem mesmo uma pequena rã (numa das grandes cenas do filme), talvez não haja nela nada de tão absoluto assim. O último estágio de aculturação se dará tristemente depois de sua morte. A ciência o esquarteja, fígado demasiado largo, cerebelo superdesenvolvido, lado esquerdo do cérebro atrofiado – Kaspar parece finalmente ter sido desvendado, compreendido e dominado. Não há tradução mais perfeita da completa ignorância em que permanecemos diante desta figura que a alegria incontida do velho escrivão que comemora a resolução do protocolo aberto para o caso Kaspar Hauser, um protocolo perfeito, bonito, mas absolutamente irrelevante quando colocado ao lado da memória e das marcas deixadas por aquele que agora está exposto na frieza de um necrotério. É na relação com essas três grandes áreas da experiência humana (religião, lógica e ciência) que Herzog mostra a fragilidade de suas verdades quando postas à prova diante de alguém que não foi educado para aceitá-las como tal. Somente uma quarta área, livre da obrigação doutrinária, com menos mandamentos e mais afetividades, terreno privilegiado do instinto e do inconsciente, poderá receber Kaspar com a inteireza que ele merece.

Paralelo a este trajeto prático de aculturação corre um outro, mais livre e talvez por isso mais efetivo na promoção de um elo entre Kaspar Hauser e o mundo que pela primeira vez o cerca. É na arte que ele encontra um correspondente fiel às suas próprias perguntas diante do enigma da vida humana, e é com ela que O Enigma de Kaspar Hauser abraça seu protagonista. O título original do filme significa algo como "cada um por si e Deus contra todos". Falta, no entanto, um complemento a esta frase tão pessimista: cada um por si, Deus contra todos, e Herzog por Kaspar e Bruno S., contra si mesmo e contra tudo o que vier. A relação é recíproca: Herzog garante à seu personagem central um sem-número de pequenos momentos de uma amorosa singeleza, e Kaspar devolve para o filme algumas das maiores seqüências do filme, justamente aquelas em que a película é impregnada dessa nova possibilidade que ele descobre na expressão artística. Depois de ser acossado por dezenas de curiosos, que fazem troça de sua persona, Kaspar tem um momento de sossego na cela em que foi novamente encarcerado pelas autoridades locais, e atentamente segue as lições que os filhos de seu tutor lhe dão sobre versinhos infantis rimados. Mais adiante, chora emocionado pela primeira vez ao ninar um bebê no colo – essa cena se repetirá em Stroszek, de maneira muito mais pungente, quando um médico amigo do personagem de Bruno S. o levará até um recém-nascido prematuro, que com suas mãozinhas frágeis se agarra bravamente nos dedos de ambos, demonstrando uma força de humanidade que transcende a necessidade de aceitação de valores, e que traçará definitivamente a opinião de Herzog sobre Bruno como não o depositário de uma "humanidade essencial", mas como o sinal de esperança para a recuperação de uma outra ordem de valores. À essa atitude acolhedora (uma exceção, se pensarmos no princípio do caos que rege a obra de Herzog), Kaspar e Bruno S. respondem com seqüências oníricas que atestam a entrada de ambos no mundo não pela via pragmática, mas pela correspondência de emoções. Só é possível sonhar a partir do testemunho da existência mundana, mas uma vez testemunhada, podemos embarcar numa viagem sem limites por aquilo que nossa vontade de experiência desejar – e talvez seja esse o grande elo entre Werner Herzog e Bruno S., esta mesma disposição de experimentar a vida sempre de peito aberto.

Por Rodrigo de Oliveira
Contracampo - Revista de Cinema

Veja também:
O Enigma de Kaspar Hauser e o Enigma de Herzog

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